Mas se o post é sobre crise de petróleo, porque raios tem uma foto de algas marinhas? |
O petróleo
vai acabar um dia. É um fato. As reservas de petróleo demoram milhares de anos
para se formar, e nós humanos somos capazes de consumir um poço de petróleo
inteiro em poucas dezenas de anos. E nem adianta, não há pré-sal que dê conta
dessa matemática. Um dia vai acabar, ponto final. Essa questão não é nem um
pouco nova, pelo contrário, ela existe desde pelo menos 1956, quando o
fechamento do Canal de Suez pelo Egito deu início à primeira crise do petróleo.
O mundo deu-se conta de que as reservas eram, sim, finitas, e pior, estavam
muito mal distribuídas pelo globo...
Aos poucos
(e enfatizem o aos poucos) o mundo passou a pensar e procurar novas fontes de
combustíveis que fossem renováveis, ao contrário dos poços de petróleo. O
Brasil teve (e tem) um papel pioneiro, lançando o programa pró-álcool em 1975, dois
anos após a segunda crise do petróleo, em 1973, que consistia em produzir
bioetanol a partir de cana-de-açúcar. Os EUA tentaram imitar (uns trinta anos
mais tarde), produzindo bioetanol a partir de milho (uma tremenda furada, já
que o rendimento é baixíssimo comparado com o processo brasileiro). Várias
outras fontes de biocombustíveis foram e vêm sendo testadas, mas todas têm um
problema em comum: elas competem com os alimentos. A cana por exemplo. Já
estamos mais do que acostumados em ouvir que o açúcar ficou mais caro por conta
da demanda por álcool combustível, ou vice-versa. E quando a fonte não é
comestível, há a questão da competição por terras. Ou seja, hectares que forem
ser usados para plantio de mamona (que não é comestível, por exemplo), para
gerar biocombustíveis, poderiam estar sendo usados para plantar comida, oras! E
acreditem, terras cultiváveis serão disputadíssimas num futuro (infelizmente)
não muito distante.
Mas um
estudo que ganhou a capa da Science
no mês passado pode mudar esse horizonte sombrio. Os pesquisadores, que
trabalham numa empresa de biotecnologia da Califórnia, usaram uma Escherichia coli geneticamente
modificada para transformar algas marinhas em bioetanol. A E. coli é sem dúvida a bactéria mais estudada do mundo, e está
pertinho de você. Na verdade, dentro de você. Ela naturalmente habita o cólon
de animais de sangue quente, e é frágil, quase não sobrevive fora do organismo
de alguém (por isso ela é usada como indicador de poluição recente, pois se você
encontrar E. coli em algum ambiente é
porque houve algum tipo de contaminação tão recente que a E. coli ainda nem morreu).
A E. coli é capaz de fermentar alguns
carboidratos (açúcares), ajudando na sua digestão (e também faz vitamina K de
graça pra você, que é incapaz de sintetizá-la). Mas a E. coli não consegue degradar algas marinhas. As algas são
compostas de três tipos de açúcar: alginato, manitol e glucana. Naturalmente, a
E. coli é capaz de degradar o manitol
e a glucana, mas não o alginato. O alginato é um carboidrato composto de
repetições lineares de dois açúcares individuais, como uma “correntinha” enorme
feita de dois “elos” diferentes. O que os pesquisadores fizeram foi inserir os
genes responsáveis pela degradação do alginato na E. coli, mas não apenas isso. Eles transformaram a bactéria numa
plataforma completa de degradação de alginato. Eles inseriram na E.coli mais de 20 genes de diferentes
origens: Vibrio splendidus, uma
bactéria marinha capaz de degradar algas, Pseudoalteromonas,
outra bactéria marinha que também coloniza algas, e Zymomonas mobilis, uma bactéria capaz de produzir etanol em altos
níveis. Esses genes foram capazes de degradar o alginato de uma “correntinha”
de açúcar para apenas alguns “elos”, transportar essas pequenas cadeias para
dentro da bactéria, separar os elos até açúcares individuais, transformá-los em
intermediários, até que pudessem ser aproveitados pelas próprias vias da E. coli produzindo por fim uma molécula
que poderia ser transformada em etanol (através dos genes da Zymomonas).
Representação esquemática das vias de degradação de alginato "implantadas" na E. coli |
No total,
aproximadamente 40 Kilobases foram inseridos na pobre E. coli. O genoma da E. coli
tem apenas 1 cromossomo circular de pouco mais de 4 Megabase, ou seja, quatro
milhões de pares de bases nitrogenadas (aquelas letrinhas A, T, C, G, que
codificam o DNA). Eles adicionaram 40.000 pares de bases, o que corresponde a 1%
do genoma da bactéria! Acredite em mim, isso é muita coisa! Num laboratório
comum, não se consegue nem mesmo colocar mais do que 20 Kilobases DENTRO da
bactéria. Imagine colocar tudo isso integrado dentro do GENOMA dela! Essa E. coli deve ter batido o recorde de
organismo mais geneticamente modificado.
Depois
dessa manipulação toda, eles finalmente testaram a capacidade da bactéria de
degradar a alga e produzir etanol. Eles adicionaram alga pulverizada (uma
farofa de alga praticamente) na cultura de E.
coli e monitoraram o consumo de açúcares e a produção de etanol. Os
resultados foram bem positivos. Conseguiu-se 0,281 gramas de etanol para cada
grama de alga seca utilizada, o que corresponde a 80% do rendimento teórico, ou
seja, a bactéria transformou 80% dos açúcares da alga em etanol (até porque, a
alga não é feita só de açúcar). E sabe qual a melhor parte? Já existem "fazendas" de algas, mas você não precisa de terras pra cultivar algas! E com quase 70% do globo coberto por mares, estamos longe de ter uma disputa por "mares cultiváveis".
"Fazenda" de algas marinhas na China |
Os próximos
passos agora devem ser escalonar o processo, pra crescer a bactéria em grandes
volumes, podendo assim, usar muita alga e conseguir muito etanol, já que todos
os testes foram feitos em escala de laboratório. E num futuro talvez não tão
distante você poderá abastecer seu carro com bioetanol feito de algas. Pode
falar, você já pode ter pensado em muitas alternativas pra solucionar a crise
da falta de petróleo, mas aposto que NUNCA imaginou que a solução pudesse
envolver algas e bactérias!
Por isso
esse estudo é um bom exemplo de muitas coisas: um bom exemplo de contribuição
da ciência à uma necessidade global, um bom exemplo de que organismos
geneticamente modificados não se limitam às sementes da Monsanto, um bom
exemplo de que organismos geneticamente modificados não são necessariamente ruins,
e um bom exemplo de que coisas loucas e não convencionais podem dar certo.
Mensagem
pra levar pra casa: Não limite seu pensamento!
Por Luiza Montenegro Mendonça.
Wargacki, A., Leonard, E., Win, M., Regitsky, D., Santos, C., Kim, P., Cooper, S., Raisner, R., Herman, A., Sivitz, A., Lakshmanaswamy, A., Kashiyama, Y., Baker, D., & Yoshikuni, Y. (2012). An Engineered Microbial Platform for Direct Biofuel Production from Brown Macroalgae Science, 335 (6066), 308-313 DOI: 10.1126/science.1214547