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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Verdade, ciência e ME/CFS

Uma vez um professor meu de filosofia (cujo nome nem lembro mais) perguntou à minha turma de ensino médio: Onde nasce a verdade?

Depois de muito debater (e não chegar a lugar nenhum, diga-se de passagem), o professor respondeu: A verdade nasce na discussão científica. Grupos de pesquisa experimentam exaustivamente (e repetidamente) até terem certeza de que tal resultado é real. E ali, uma verdade nasce. O HIV é o agente causador da AIDS, é um exemplo. É uma verdade reconhecida. E nasceu através da prática do método científico.


Hoje em dia, a ciência funciona mais ou menos assim. Um grupo de pesquisa tem uma hipótese, imagina os experimentos e controles que precisa fazer pra testar essa hipótese, realiza esses experimentos, analisa e interpreta os resultados e chega à conclusão se sua hipótese é verdadeira ou não (ambos os casos são válidos, e a ciência andaria muito mais rápido se mais artigos com resultados negativos fossem publicados). Ao final, redige-se um artigo científico com a hipótese (e da onde ela surgiu), os métodos experimentais (exaustivamente detalhados), os experimentos, seus resultados e a conclusão. Esse artigo é então enviado a uma revista científica que irá analisá-lo e decidir se ele deve ser publicado como está, se há a necessidade de algum experimento adicional, ou se simplesmente ele não deve ser publicado (por não ter alcançado qualidade científica para tal).


Um artigo científico não termina com sua publicação numa revista (a ciência não acaba aí!). Ele apenas começa ali. A partir desse momento, aqueles resultados serão postos à prova por outros grupos de pesquisa a fim de replicá-los e provar que os resultados são válidos. E é bom que assim seja.


Recentemente, a renomada revista Science publicou a retratação de um artigo original de 2009 que havia primeiramente identificado um novo vírus como o agente causador da encefalomielite miálgica (mais conhecida como síndrome da fatiga crônica, ou ME/CFS, de Myalgic Encephalomyelitis/Chronic Fatigue Syndrome). A ME/CSF é uma doença altamente debilitante caracterizada por dores intensas, náuseas, lapsos de memória e outros sintomas, cujo agente etiológico continua desconhecido e foi por muito tempo praticamente ignorada pelo CDC (Center for Disease Control - Centro de Controle de Doenças dos EUA), que chegou inclusive a considerar que a doença tinha causa psicológica e era relacionada  à abusos e traumas sofridos na infância. Devido a isso, tanto os pacientes de ME/CSF, quanto a pesquisa sobre a doença, nunca foram levados muito a sério.

Então, com o artigo de 2009, pesquisadores isolaram um novo retrovírus de pacientes com ME/CSF, o XMRV (sigla para Xenotropic Murine Leukemia Virus related Virus, traduzindo, se isso fosse possível, ficaria, vírus relacionado ao vírus xenotrópico da leucemia murina) e relacionaram o vírus como possível causador da doença. Finalmente prova de que a ME/CSF era uma doença com causas virais e não simplesmente psicológicas. No congresso anual sobre Retrovírus do Cold Spring Harbor Laboratories (fundado pelo prêmio Nobel James Watson, o mesmo da dupla hélice de DNA) em 2010, duas sessões foram dedicadas apenas para discussão desse novo vírus, tamanha a repercussão dessa descoberta (eu estava lá \o/). No entanto, com o passar do tempo, outros grupos tentaram replicar os resultados originais, sem sucesso. Nesse mesmo congresso alguns grupos já começaram a discutir a fim de tentar entender porque as coisas não funcionavam como deveriam. Cientistas são assim, eles demoram muito e fazem muitos testes antes de afirmar qualquer coisa com veemência. Ainda bem. Por isso na época ainda se discutiam diferenças nos métodos usados por diferentes grupos, possíveis diferenças nas populações de pacientes e por aí vai...


Porém, mais tarde foi-se descobrindo falhas nos métodos e até mesmo omissão de dados relevantes (como o tratamento com uma droga que não estava previamente descrita nos métodos). E a coisa começou a desmoronar. Primeiramente, houve uma retratação parcial de alguns resultados do artigo original, até que finalmente a Science retratou totalmente o artigo com a nota:
A Science perdeu sua confiança no artigo e na validade de suas conclusões. (...) Nós estamos editorialmente retratando o artigo. Nós lamentamos o tempo e recurso que a comunidade científica tem devotado à tentativas infrutíferas de replicar esses resultados.
Esse episódio retrata bem a necessidade de uma comunicação científica transparente e minuciosamente detalhada, a fim de que episódios como esse não se repitam. E para que sempre possamos confiar no peer-review, ou revisão pelos pares, para que a “verdade” possa ser retestada até que se prove ser verdade de fato (ou não). Todo e qualquer interessado deve ter acesso a qualquer detalhe e resultado, a fim de que esse sistema continue funcionando brilhantemente como tem feito até hoje.

Como o virologista Vincent Racaniello costuma dizer: Trust science, not scientists. Ou, confie na ciência, não nos cientistas. A ciência sempre dará um jeito para que a verdade venha à tona, mais cedo ou mais tarde.

E é por isso que um outro episódio vem preocupando a comunidade científica, mas isso ficará pra outro post.




Maiores informações sobre a história da ME/CSF - Chronic Fatigue Syndrome and the CDC: A Long, Tangled Tale.

Ilustração retirada daqui.


Por Luiza Montenegro Mendonça.

2 comentários:

  1. Eita... a Science ter um artigo retratado parece bem tenso, hein!

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  2. E foi! E muita água rolou!!! A chefe do grupo de pesquisa teve uma briga séria com a diretora do instituto de pesquisa onde o artigo foi realizado. Acabou sendo demitida. Mas o mais sinistro é que kits de diagnóstico já estavam sendo vendidos por uma grana preta, e toda essa confusão rendeu muita grana pra algumas pessoas...

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